Como grupo de pesquisa no campo da Comunicação, formado em sua maioria por jornalistas e publicitários, não apenas estudamos os efeitos da datificação na sociedade como também somos diretamente atravessados por eles. Nossas práticas profissionais, seja em veículos de comunicação ou agências de publicidade, vêm sendo transformadas pela lógica das plataformas digitais, que passaram a estruturar a rotina de trabalho comunicacional.
A produção de conteúdo, informativa ou para fins de entretenimento, passou a ser planejada para performar em plataformas operadas por algoritmos. Nossos textos passaram a ser escritos considerando os mecanismos de busca do Google e, na publicidade, tornou-se necessário lidar com a compra de mídia por meio de plataformas de tráfego pago. Nesse cenário, a própria organização do trabalho comunicacional se torna dataficada, guiada por métricas, automações e lógicas algorítmicas.
Para aprofundar essas transformações e refletir sobre os impactos da datificação no trabalho comunicacional, entrevistamos a professora Roseli Figaro, professora titular da Universidade de São Paulo, coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT) e pesquisadora associada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Disputas e Soberanias Informacionais.
ASSIMETRIAS: Os relatórios trimestrais para investidores das plataformas Meta (Facebook) e Alphabet (Google) indicam que a maior parte da receita bilionária dessas empresas provém de anúncios patrocinados. No caso da Meta, 98% da receita advém da publicidade, enquanto no Google esse número gira em torno de 75%. Considerando que esses anúncios, em geral, são programados por profissionais de comunicação – sobretudo publicitários que atuam como gestores de tráfego pago ou analistas de mídia e performance em agências de publicidade –, como você analisa a relação entre o trabalho desses profissionais e o funcionamento das plataformas?
ROSELI: Esses profissionais trabalham para dois patrões e só recebem salário ou o contratado como PJ de uma fonte ou um patrão. Essas plataformas são empresas que vivem da canibalização do próprio sistema. A forma de funcionamento do tráfego de publicidade destrói pequenas, médias e até grandes empresas de comunicação: agências de publicidade não funcionam mais como funcionavam há dez anos; o mesmo acontece com as empresas de jornalismo e de entretenimento. A forma de produzir, vender e circular se transformou com a lógica da coleta indiscriminada e centralizada de dados dos consumidores, usuários e trabalhadores. Nesse sentido, a economia digital de dados operou uma transformação no processo produtivo, na estrutura e funcionamento das empresas. O capitalismo financeiro e plataformizado aumentou a concentração de riquezas e ampliou a pobreza e a despossessão dos bens e direitos das populações.
ASSIMETRIAS: O que conversa bastante com a questão anterior é que em um artigo recente, de 2024, intitulado “Datificação das materialidades sensíveis: captura das atividades cotidianas de trabalhadores da comunicação”, você chega a tratar sobre a coleta de dados que estes trabalhos estão envolvidos, além da condição de adaptabilidade que os profissionais da comunicação precisam ter constantemente na área, inseridos numa lógica de reestruturação produtiva que os coloca em outra noção de tempo e espaço. Você poderia explicar como esse conceito de “materialidades sensíveis”, em desenvolvimento, apareceria nas plataformas e na centralidade das relações de trabalho e, além disso, como você enxerga a necessidade e a urgência de compreender a especificidade de tais processos para os ciclos de acumulação de capital e não apenas dentro de suas dinâmicas de trabalho internas?
ROSELI: As materialidades sensíveis são todos os gestos do trabalho, os saberes e os produtos produzidos pela atividade de trabalho. No início do século XX, Taylor desenvolveu um método de observação, registro e análise do trabalho dos operários na fábrica; as análises que ele fazia resultavam em transformação da organização do trabalho, impondo ao trabalhador ritmos e formas de trabalhar advindas do que Taylor havia aprendido ao observar o trabalho. Essa prática deu origem ao que se chamou “organização científica do trabalho” (taylorismo). Henry Ford acrescentou aos métodos de Taylor a esteira móvel e uma série de políticas para as mudanças comportamentais dos trabalhadores e suas famílias. Esses elementos ampliaram o controle dos processos de trabalho e dos saberes do trabalho, das técnicas profissionais, muitas delas incorporadas às máquinas ou ferramentas. O Toyotismo, em meados do século XX, veio no mesmo sentido, para aumentar o ritmo, a produtividade e a lucratividade do trabalho em uma época de crise. Ou seja, esses métodos de organização do trabalho pelo capitalista sempre serviram para a apropriação do saber fazer do trabalho em benefício do capital, visto que o aumento da produtividade e da lucratividade não redundam em mais direitos e benefícios aos trabalhadores.
Hoje, com a economia digital de dados, as plataformas têm ferramentas (aplicativos e todos os instrumentos digitais conectados à internet que foi privatizada pelas big techs) capazes de coletar os dados do saber do trabalho, dos modos e técnicas de se trabalhar e de produzir de forma instantânea. São captados em tempo real os gestos do trabalho, seus saberes e todos os dados da subjetividade do trabalhador(a) aos quais denominamos de materialidades sensíveis. Essas materialidades sensíveis são processadas e operadas pela maquinaria digital das plataformas, com um valor inestimável para a realização do capital na forma de renovação tecnológica e patentes, circulação de perfis para agenciamento de publicidade, venda de dados para finalidades as mais diversas, e para controle e gestão política e social, implicando inclusive em processos eleitorais. Dessa forma, as materialidades sensíveis dos trabalhadores da comunicação e, falo especificamente aqui, dos jornalistas, servem para aumentar o ciclo da atenção e do engajamento, graças às notícias produzidas; servem para produzir e atualizar aplicações e ferramentas que voltam para o mercado de trabalho de todos os que usam as plataformas das empresas Meta, Alphabet, Microsoft, Amazon, Apple. Ainda, os dados são usados para predição e desenho de perfis para outras ações: publicitárias, políticas etc.
ASSIMETRIAS: Apesar do contexto das plataformas digitais, essa questão acaba dialogando bastante com a abordagem de obras e autores clássicos que têm servido a pesquisadores para compreender este cenário atual. Para Marx, no Grundrisse, por exemplo, com o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, cada vez mais a riqueza social se basearia na criação de “tempo livre” e não no domínio do tempo de trabalho – “tempo livre” esse que ele também problematiza – ; enquanto Baudrillard, como outro exemplo, chega a tratar esse “tempo livre” como um modo de consumo determinado pelo próprio valor, em que o indivíduo não é livre apesar de parecer. Nesta contextualização, como você acha que é possível entender essa instância de consumo subsumido ao capital para atender a indústria de produção de dados? E como você vê também a atuação do jornalismo nesse cenário, que parece atuar cada vez mais como indústria cultural; entretenimento, e não mais tanto como circulação de informações para um interesse público?
ROSELI: O consumo é regulado pela produção e vice-versa, sendo a produção o polo central – porque é onde está o trabalho – para entendermos todo o processo de realização da mercadoria como capital. A aceleração do tempo sempre foi a ambição do capitalista. Como disse antes, os métodos de racionalização do processo de trabalho têm como objetivo produzir mais em menos tempo, circular mais rápido – daí os meios de transporte e comunicação fazerem parte dos meios de produção – para realizar o capital.
Então, com a internet e a economia digital de dados essa aceleração chegou a níveis impensáveis há 20 anos. A concentração de poder e dinheiro – capital – se deu de maneira exponencial nas mãos de meia dúzia de grandes empresas que controlam todos os processos de produção de dados, de softwares, hardwares, datacenters, cabos de transmissão e satélites. Com isso, a internet foi privatizada e todos os sonhos anarquistas e libertaristas ingênuos serviram para fortalecer politicamente as big techs e desarmar o movimento de resistência e em prol de uma outra forma de organização da sociedade. O jornalismo é uma das vítimas desse processo. O jornalismo é um discurso da modernidade humanista. No século XX, viveu entre a corda bamba do dever do interesse público e do negócio como mercadoria capitalista. Na maior parte das vezes, serviu mais ao liberalismo econômico do que à democracia e soberania popular. É só pegarmos a história do Brasil para vermos desde Getúlio Vargas, da ditadura civil militar, ao golpe parlamentar de 2017 e até a recente eleição de Jair Bolsonaro, para vermos que o jornalismo praticado no Brasil é servil aos interesses do capital, com raras exceções (jornalismo popular, sindical, anarquista, independente, comunitário, alternativo). Hoje é difícil ter estômago para ler o jornalismo praticado pelas tradicionais empresas jornalísticas. Os profissionais foram açambarcados de seus direitos como trabalhadores, e inclusive dos direitos de autoria daquilo que escrevem, ou por meio das técnicas de processamento artificialmente inteligente ou porque não são pagos na forma dos direitos do trabalho.
ASSIMETRIAS: Talvez, um desenrolar desse processo seja o que você afirma como um “embaralhamento entre tempo de trabalho e não trabalho”. Pode-se entender que existe uma degradação da vida pessoal dos trabalhadores por uma falta de divisão entre um tempo profissional e um tempo de ócio, digamos assim, com a família, para os estudos ou para o lazer. Essa condição acaba atingindo também os usuários, que estão totalmente inseridos nessa lógica de “não-trabalho”, mas ainda subsumidos a um trabalho abstrato, tendo no seu momento de “lazer”, por assim dizer, apenas um oposto do trabalho, mas que serve justamente como alimento da datificação para as plataformas e que fundamenta o trabalho dos trabalhadores envolvidos nesse processo. Você acredita que, por meio disso, além de uma crítica ao trabalho por plataformas, é preciso nos atentarmos a uma crítica a esta instância do “não-trabalho” – também como forma complementar que pode aprofundar a discussão sobre o compartilhamento e uso massivo de dados – e de que maneira você enxerga como isso poderia acontecer?
Todo tempo conectado à internet é tempo de entrega de dados para as plataformas. O tempo conectado de trabalho entrega dados mais ricos que servem, em nossa hipótese de datificação do trabalho dos comunicadores, de maneira mais direta como produto para as plataformas. Por outro lado, o tempo-livre tornou-se um tempo absolutamente regrado e programado pelo Capital, não só na forma de entretenimento como era no tempo dos meios de comunicação analógicos. Agora tudo é coletado, seu celular é uma antena, coleta até sua hora de sono, como você dorme, se ronca, se levanta para ir ao banheiro etc. Esses dados, por exemplo, podem servir para a venda ao seu plano de saúde, e assim fazer predições sobre possíveis hábitos que indicam problemas atuais ou futuros de saúde, daí você poder vir a pagar mais pelo seu plano.
ASSIMETRIAS: A operacionalização das ferramentas de anúncios das plataformas digitais envolve também questões éticas, como a manipulação de dados para otimizar a segmentação de públicos-alvo para campanhas publicitárias. E isso parece ilustrar bastante aquilo que você diz que coloca “o trabalho como processo comunicacional e a comunicação como trabalho”. Considerando que as próprias plataformas incentivam o compartilhamento e uso massivo de dados, qual deve ser, na sua visão, a responsabilidade das plataformas e dos profissionais de comunicação envolvidos nesse processo quanto à manipulação de dados?
ROSELI: Total responsabilidade das plataformas digitais. Na forma em que estão os termos de uso e as políticas de privacidade dessas empresas, não há alternativas para os usuários. Essas empresas dizem que coletam, que usam, que vendem e você não pode fazer mais nada se aceitou os termos de uso.
Nem mesmo a LGPD dá conta de garantir privacidade e direitos sobre os nossos dados. Há muitas artimanhas feitas pelas empresas e que estão nos termos de uso. A única forma de regular isso é obrigá-las a mudar os termos de uso. Os dados não podem ser coletados e usados ao bel prazer delas. Elas não podem se autorregular. Para isso existe um Estado, uma Constituição e um país. As empresas não podem ter mais poder sobre as populações do que os respectivos Estados. Os profissionais da comunicação na verdade são os empregados não pagos das plataformas. Esses profissionais deveriam se organizar e lutar pelos seus direitos profissionais, éticos e salariais. Caso contrário, serão extintos como profissionais.
ASSIMETRIAS: Em entrevista recente ao podcast Stratechery, Mark Zuckerberg comentou a evolução da inteligência artificial nas plataformas da Meta, destacando que a IA já tem aprimorado significativamente a segmentação de anúncios. O CEO também apontou que o próximo passo será a automatização da criação dos próprios anúncios, atividade que hoje, em muitos casos, é desempenhada em agências de publicidade por profissionais de criação. Embora a compra de mídia ainda, em muitos casos, dependa de profissionais como gestores de tráfego, as declarações de Zuckerberg indicam uma tendência de eliminação dessa intermediação. Como você enxerga o futuro do trabalho dos comunicadores – especialmente os profissionais da publicidade – frente a esse movimento de “desintermediação” abordado por Zuckerberg? Há espaço para resistência? Que alternativas você vislumbra para esses profissionais?
ROSELI: Acho que será mais rápido do que imaginamos. Sobrarão alguns. Vocês são jovens e talvez nunca tenham ouvido falar na profissão de chapeleiro, por exemplo, havia oficinas, depois fábricas de chapéus, eram operários. Aí desapareceram como categoria. É assim: as mudanças nos meios de produção alteram o perfil das forças produtivas. Ao contrário do que nos disseram, as tecnologias digitais não eliminaram o trabalho manual, pesado, perigoso. Aumentou esse trabalho, vejam os motoqueiros entregadores de produtos, morrem aos montes para atender a lógica gamificada do trabalho imposto pelas plataformas. O setor do serviço de cuidados aumentou e foi plataformizado. Trabalhos como tradutor, jornalista, publicitário, fotógrafo, contador etc. estão na linha de frente de transformações que podem levar à redução ou mesmo extinção dessas profissões. Serão curadores de luxo da máquina. Como diz Antonio Casilli (autor do livro L’attend le robot), estarão a serviço e subordinados à máquina.
ASSIMETRIAS: Existe ainda uma longa e densa discussão teórica sobre a produção de valor – no sentido da economia política – , nessa economia de dados, que acabaria colocando o indivíduo como mercadoria nesses cenários da comunicação, no que se tem mais comumente interpretado como uma força de trabalho não remunerada pelas plataformas. Sendo esta atividade tanto do trabalhador direto das plataformas, quanto nessa figura indispensável do usuário, como elementos próprios da circulação de dados inerentes a um ciclo de acumulação do valor, como ainda seria possível enxergar formas de resistência a essa problemática que parece tão inerente à própria forma que a tecnologia se concebeu enquanto relação social?
ROSELI: Todos nós somos vítimas da captura de nossos dados. Os dados são matéria prima fundamental da economia digital de dados. Os dados têm valor. Se assim não fosse, os cinco ou seis grupos financeiros mundiais que mandam nas maiores big techs não continuariam a investir nelas. O que os dados representam? Sobretudo controle político, predição do futuro do que será produzido e consumido. Controle dos recursos naturais e da circulação de mercadorias. Trata-se de geopolítica. O autoritarismo que se instalou nos EUA deve-se ao investimento das big techs nas eleições de Trump. Elas investiram para quebrar as iniciativas de regulação em andamento nos EUA e no resto do mundo. Elas investiram para impor políticas aos organismos multilaterais mundiais e disputar com a União Europeia e a China. Simples assim. Resistência se faz em cada dia, em cada Estado nação, em cada movimento contra o absurdo monopólio de poder dessas empresas. Temos de ter clareza que somente fortalecendo o Estado em busca de uma soberania nacional popular teremos alguma luz no final do túnel. Sem um projeto de soberania digital nacional popular, em defesa dos nossos recursos naturais, tecnológicos e da população trabalhadora, não há saída.