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Habitar as fissuras das infraestruturas algorítmicas e reafirmar a agência humana: Entrevista com Tiziano Bonini e Emiliano Treré

Por:

Kérley Winques, Júlia Valgas e Olavo Claus

A fundação do Assimetrias, em 10 de julho de 2024, trouxe um novo desafio: definir uma leitura coletiva que abrigasse os temas de interesse dos diversos membros do grupo. Que obra escolher para discutir mediações algorítmicas, plataformização, resistências, cidadanias digitais, perspectivas feministas e justiça de dados? Como abordar todos esses temas de forma localizada, usando o Sul Global como bússola?

Precisávamos de algo que ampliasse nosso conhecimento, mas também nossa prática. A escolha foi certeira: Algorithms of Resistance: the everyday fight against platform power (em tradução livre, Algoritmos da Resistência: a luta diária contra o poder das plataformas), assinado por Emiliano Treré (Universitat de València, Espanha, e Cardiff University, Reino Unido) e Tiziano Bonini (Università di Siena, Itália).

A obra, lançada em 2024, propõe uma virada conceitual e metodológica: em vez de focar apenas na lógica de dominação das plataformas, direciona o olhar para as formas cotidianas — táticas, situadas e ambíguas — de contrapoder, onde residem as formas de resistências às assimetrias criadas (ou, por vezes, acentuadas) pelos algoritmos.

Por meio de uma abordagem qualitativa multimétodos, com entrevistas em profundidade, trabalho de campo, etnografia digital e análises de fóruns online, por exemplo, os pesquisadores articularam experiências e produções teóricas do Norte e Sul Global. Como resultado, uma análise que combina o reconhecimento do poder dos algoritmos e plataformas com a potência inegável das resistências construídas nas brechas das infraestruturas. Impulsionada pela força da solidariedade e invenção coletivas, a obra contribui para a construção de uma Internet mais digna e tecnodiversa.

Após a leitura do livro, o Assimetrias realizou uma entrevista* com Bonini e Treré, que destacaram as principais questões abordadas no livro e como elas se relacionam com a atualidade. Imaginemos juntos resistências coletivas.

 

ASSIMETRIAS: Qual é o argumento central do livro de vocês? O que significa pensar em resistência algorítmica?

AUTORES: Pensar em resistência algorítmica é recusar a naturalização dos sistemas algorítmicos como neutros, inevitáveis e inquestionáveis. Isso significa reconhecer que algoritmos não são apenas ferramentas técnicas, mas sim arranjos sociotécnicos que incorporam decisões, vieses e assimetrias de poder; muitas vezes invisíveis, mas profundamente consequentes. Envolve também reconhecer que a resistência pode ser de pequena escala, tática, até ambígua, mas ainda assim profundamente significativa. A resistência algorítmica não se trata de “hackear o sistema” em um sentido heroico e individualista, mas de habitar as fissuras das infraestruturas algorítmicas, de reafirmar a agência humana onde os sistemas buscam automatizar nosso comportamento. Em última instância, pensar em resistência algorítmica é um convite para imaginar e realizar formas alternativas de engajamento com a tecnologia, baseadas não na dominação e na ação unilateral, mas na cooperação, na solidariedade, na contestação e no cuidado. É assim que nós compreendemos o sentido, a importância e o argumento central do livro.

 

ASSIMETRIAS: Como vocês perceberam a recepção do conceito de resistência algorítmica nos estudos críticos de plataformas? Há uma tendência crescente de incorporá-la à análise das plataformas?

AUTORES: O conceito de resistência algorítmica tem ganhado força nos estudos críticos de plataformas. As pesquisas iniciais frequentemente enfatizavam o poder estrutural esmagador das plataformas, às vezes retratando os usuários como amplamente impotentes. No entanto, nos últimos anos, houve um reconhecimento crescente, e achamos que nosso livro teve um papel nisso, de que os usuários não são meros receptores passivos do controle algorítmico, mas também agentes ativos capazes de subversão, adaptação e negociação. Nosso trabalho impulsiona essa visão e, em aliança com essa mudança, contribui para ela, propondo uma visão mais nuançada que reconhece as formas ambivalentes, situadas e frequentemente frágeis de resistência que emergem nos encontros cotidianos com os sistemas algorítmicos. Embora algum ceticismo permaneça, especialmente quanto ao potencial transformador das micro resistências, vemos uma abertura crescente para teorizar a resistência como parte integral da dinâmica das plataformas, e não como uma anomalia externa.

 

ASSIMETRIAS: Em seu livro, vocês destacam o poder da cooperação humana diante das economias de plataforma. Em que medida as formas de resistência que vocês analisam são mais eficazes quando realizadas coletivamente — como no caso dos pods do Instagram, discutidos no Capítulo 3 — em comparação com ações individuais?

AUTORES: Formas coletivas de resistência são sempre mais eficazes do que as individuais. Isso poderia ser aplicado a uma longa história de formas coletivas de resistência, não apenas à resistência algorítmica. Em primeiro lugar, porque algumas práticas mais sofisticadas, como os laboratórios de busca do Uber ou os registros de solidariedade, só funcionam se mais pessoas participarem e trouxerem benefícios para todos, não apenas para indivíduos. No entanto, mesmo ações individuais não seriam possíveis sem grupos de bate-papo coletivos, onde os trabalhadores aprendem táticas individuais. Esses grupos são muito importantes. Então, a cooperação é a chave para as formas de agência e resistência algorítmica, mas o individual e o coletivo se reforçam mutuamente. Eles não são dois domínios separados, são duas dimensões muito importantes. Contudo, em termos de impacto e eficácia, temos que dar preferência às formas coletivas de resistência.

 

ASSIMETRIAS: Durante as pesquisas de campo, qual foi a tática mais surpreendente ou inovadora que vocês encontraram?

AUTORES: É difícil escolher uma, mas talvez algo que nos surpreendeu foram os “solidarity logs” entre trabalhadores de apps, nos quais eles coordenam coletivamente os horários de entrada e saída nos aplicativos para manipular a disponibilidade da plataforma e os preços dinâmicos. Isso é feito através de grupos de mensagens. Essa tática reflete um entendimento coletivo sofisticado do sistema algorítmico e uma consciência profunda que demonstra que solidariedade e engenhosidade podem emergir mesmo em ambientes de trabalho hiperindividualizados e gerenciados por algoritmos. Mas encontramos muitas outras. Uma tática que cristaliza de forma quase surreal o que enfrentamos hoje é a de um ativista tentando gravar e transmitir ao vivo uma ação policial, e o policial coloca uma música com direitos autorais no celular — de um artista pop — para acionar o mecanismo da plataforma que bloqueia transmissões com material protegido. Isso é incrível, sabe? Resume o campo de batalha das práticas algorítmicas. Mas o livro está cheio desse tipo de tática inovadora que evolui diariamente.

 

ASSIMETRIAS: Algumas estratégias de resistência, como manipular algoritmos para obter mais visibilidade, podem ser exaustivas ou até prejudiciais a longo prazo, especialmente considerando a saúde mental. Existem riscos para os usuários que se engajam nesse tipo de ação?

AUTORES: Obrigado por considerar esse aspecto da saúde mental. Nós refletimos sobre o que significou para nós e nossa equipe fazer pesquisa durante a COVID, porque foram tempos desafiadores para a nossa saúde mental. Na verdade, esses tempos em que vivemos, em geral, são desafiadores para a saúde mental, mas aqueles dias foram uma loucura para fazer pesquisa e realmente cuidar uns dos outros. Se engajar na resistência algorítmica, particularmente em práticas voltadas a maximizar visibilidade, engajamento ou ganhos, pode ser psicologicamente desgastante. Muitos usuários, especialmente trabalhadores de aplicativos e criadores de conteúdo, vivenciam ciclos de ansiedade, exaustão, alienação, enquanto tentam se adaptar a ambientes algorítmicos opacos e em constante mudança. Além disso, quando táticas de resistência falham ou são cooptadas pelas dinâmicas das plataformas, os usuários muitas vezes enfrentam desilusão e esgotamento. Assim, embora a resistência demonstre formas importantes de agência, ela também acarreta custos pessoais significativos. Reconhecer esses riscos para a saúde mental é essencial para imaginar formas de resistência mais sustentáveis, coletivas e cuidadosas. Achamos que é uma parte importante tanto para as pessoas engajadas na resistência algorítmica quanto para nós, pesquisadores, cuidarmos da nossa própria saúde mental ao estudar esse fenômeno. Achamos que deveríamos sublinhar e dar visibilidade a ambos os aspectos.

Por fim, gostaríamos de enfatizar que nosso livro Algorithms of Resistance não é apenas uma tentativa de mapear e teorizar práticas contemporâneas de resistência e contestação, mas também um convite para imaginar um novo tipo de relação com a tecnologia. A resistência algorítmica mostra que mesmo nos ambientes mais assimétricos e extrativos, a agência persiste. Nossa esperança é que este trabalho contribua para ampliar a conversa e a imaginação sobre e ao redor da tecnologia, e que a sociedade que as molda possa ser reimaginada rumo a futuros mais democráticos, participativos, justos e humanos. Essa é a nossa contribuição.

 

*Uma versão ampliada da entrevista será publicada na Liinc em Revista ainda em 2025. 

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